Josias Padilha
(Escritor, estudantes de Letras na Usp)
“Tudo é tão vago como se fosse nada.”
Caio Fernando Abreu
Enfim, ganha substância tátil a mais que burilada palavra em que Alexandre Bonafim vem forjando há tempos em sua virtual oficina pública, o Blog “Arqueologia dos Acasos”. Quem tem o prazeroso hábito de visitar este sítio, pode perceber de perto o esmerado processo de lapidação do que se tropeça nas escavações do oco do mundo. São poemas inteiros que somem, versos que mudam, palavras pinchadas fora, na busca da expressão precisa, da forma exata que já se precipita em conteúdo ressonando no coração do leitor. É como coleta de fruto no ponto que vários poemas irromperam do “Arqueologia dos Acasos” para este Biografia do deserto, cuidadosamente ordenado e fixado neste insubstituível objeto transcendente que é o livro.
Denunciando, já na capa, a riqueza plástica que poderá ser observada pelo leitor ávido de atravessar esse deserto, está a gravura do grande expressionista alemão Franz Marc. A transdisciplinaridade artística de Bonafim produz grandes achados. O diálogo de sua poesia com a pintura, a escultura, o cinema – vide as cinco projeções nas telas de poemas em prosa exibidos no livro – e, mesmo com a grande prosa, gera um lirismo extremamente imagético. Manancial de inusitadas metáforas, das quais arroiam versos como “A vida/ singelo milagre/ correnteza de assombros/ moinho de espantos” rumo a um frenesi que explode em “Gotas de/ grito” orvalhando “a terra da ausência”, o poeta pesa cada palavra, cada adjetivo, explorando suas potencialidades, suas forças expressivas. É como parte desses grandes achados que temos os “Cavalos amarelos” de Franz Marc a postos nos umbrais dos possíveis mundos suscitados pelo título Biografia do deserto, título esse aparentemente estranho àquela vivacidade latejante da gravura. Como não estamos diante da junção de realidades díspares como praticado pelo surrealismo, essa estranheza é facilmente dissolvida na imensa riqueza semântica dessa associação. O amarelo está entre as mais quentes das cores, a mais ardente coloração vestindo o cavalo, carro do sol escaldando o biografado "ancião de areia" do deserto de Bonafim. Para Kandinsky, o amarelo é a mais divina das cores e, ao mesmo tempo, a mais terrestre. É essa mesma ambigüidade que veste o cavalo, ser ctônico que alcança a função de corcel dos deuses. É nessa condição que ele pode passar a totem do eu lírico sem face da lírica moderna. Um processo de iniciação para a vestimenta das mais diversas máscaras, pois o cavalo, embora sendo da terra, se funde a todos os outros elementos. Em suas metamorfoses, aparece galopando nas ondas das águas, alado, rasgando os ventos e, bola de fogo, atravessando as estrelas. E alcança no dragão, um híbrido hipoofídico, um cavalo-serpente que também é pássaro, a sua mais fantástica metamorfose. Sobrevoando esse deserto biografado, ele pousa no poema “Os dragões” para nos lembrar do paraíso no tabuleiro complexo das contradições que é esse próprio livro.
Toda essa riqueza de imagens vem a serviço do oco, do vazio, do nada, da ausência, da orfandade de um mundo que perdeu o sentido. Logo no primeiro poema do livro, em uma homenagem a grande poeta Dora Ferreira da Silva, encontramos, em tom elegíaco, os seguintes versos: “[...]/ Em todas as pedras/ em todas as perdas/ uma orfandade clamará/ sempre pelo teu nome.” É por meio do esmagador anagrama de pedras como perdas que o nosso poeta chega ao pó arenoso das ausências do mundo. Criando um deserto onde se lança, a poesia cavalga em dunas de silêncio. Entranha-se no nada e o povoa com imagens em constante metamorfose, exibindo o poder transfigurador de todo o grande poeta. Com esse poema, Bonafim revela a sua própria poética transpassada pelos elementos simbólicos do feminino e do desarmado olhar da infância. Embora falando de Dora, é também como um menino aturdido “pelos crepúsculos” que o poeta nos convida para as suas “cirandas de cinzas”, “cirandas de ausências” brincadas por “crianças envelhecidas”. Essas cirandas ecoam por todos os poemas, acompanhando a queda do eu lírico que lamenta a totalidade estilhaçada. É na infância, quando “tudo é inaugural”, que o poeta procura envergar o mundo numa curva urobórica na qual os tempos se fundem e morte e vida se encontram – “Nas alturas da casa, a anciã acalenta as preces e os mortos, mas só a menina conhece a linguagem do imperecível.” Mas essa criança não existe, é miragem, caco de memória da “avó (que) já se sabe/ quase morta...”
“Giramos em torno de uma ausência e todos os nossos significados se anulam ante essa ausência”, já nos advertiu Octavio Paz. A imagem evaporada do mundo, cede lugar a hegemonia da técnica, com sua paisagem hiper-real, onde não cabe a poesia. Nesse mundo onde o homem não consegue mais chegar a si mesmo, porque não consegue mais alcançar o outro, há uma multiplicação cancerosa do eu fechado e obstinado em si mesmo, temos uma dispersão em repetição, propagação do idêntico. O tu desaparece da consciência e com ele o próprio mundo. E “a poesia:”, acrescenta Paz, torna-se “procura dos outros, descoberta da outridade.” Mas se não há nem mesmo a possibilidade de monólogo, porque é o outro quem escuta o que digo a mim mesmo, a poesia torna-se apenas iminência de presença tecida com os fios da ausência, uma tessitura da incomunicabilidade. Eis o que o leitor observará na poesia de Bonafim, poeta imerso nas grandes questões de seu tempo, de olhar agudo, treinado também pelo exercício constante de suas “crônicas de crítica literária”, publicadas em seu Blog. Com essas crônicas, o nosso poeta, fazendo poesia de poesia, lê os grandes poetas ignorados pelo pequeno circuito da crítica consagrada.
Biografia do deserto nos lança à consciência do nosso abandono por nós mesmos, ao desamparo que nós nos legamos, a poeira de existência que nós nos tornamos. Caminhando por esse terreno arenoso, o leitor encontrará células de ausências figuradas no que ninguém vê, como a flor drummondiana plantada no asfalto, aqui, metamorfoseada em palhaço. A própria alegria vira “avesso do nada/ espelho da ausência” refletindo os bastardos do mundo como o próprio poeta e toda a sua legião de pedintes, lázaros, joãos, anciãs, bêbados, cegos, estátuas, anjos mortos, cães amputados e cães apodrecendo na “soleira do mundo”, virando ceia para um urubu, “plumagem de luto”, única testemunha para o que “ninguém viu/ ninguém ouviu.” Essa ausência, essa incomunicabilidade, transforma os arroubos de alegria, de plenitude dos poemas “O unicórnio”, “Os amantes”, “Esquina”, “Liberdade livre”, em efêmeras miragens no meio do deserto. Talvez, ecos da “insólita festa” d“os mortos recém-sepultados/ enterrados pelo esquecimento”, da qual “ninguém ouviu os risos”.
Já tropeçando no encalço das últimas palavras, o leitor convém ficar alerta: assim como um monumento não captura os olhares de um transeunte pela sua inscrição, a poesia também escapa às suas apresentações, meras legendas diante da grandeza do verso no qual cada linha descortina um mundo. Prenhe do tudo a poesia cria a ausência com o mesmo material da presença, faz a tristeza e a melancolia com os arroubos da alegria e da plenitude. Esse caráter totalizador da poesia foi explorado por Bonafim como um mestre em seu ofício. Biografia do deserto é o trabalho de um eremita cego que “veste/ o âmago/ da palavra/ o sêmem/ do verbo” e com sua vidência “desvenda/ as metáforas do impossível” e nos conta o árido ermo no qual nos lançamos. Diante dessa grandeza e já com o leitor alerta, eu só posso terminar esse pre(nada)fácil parafraseando um monolito do mais emblemático poema dessa obra, “O lagarto”: ao me deparar com a poesia tão repleta de poesia me fiz silêncio.
Josias Padilha