sábado, 12 de julho de 2008

O lagarto


Franz Marc
Sob o sol
cáustico
repousa
o lagarto
sobre a pedra.

Não é feita
de tempo
a dormência
do lagarto.

Ali ele permanece
sem início
sem fim.

O lagarto
acostumou-se
à pedra
tão cinza
quantoas suas
escamas.

O lagarto
é a pedra
habituado
a lutar
contra
a noite
a chuva
o ar.

O lagarto
não soube
o que foi
a vida
entretanto
sua pele
reflete
a amplidão
das estrelas.

O lagarto
é flor
que não se soube
pétala
e perfume.

É lagarto simplesmente.

Coisa que não existe
que nunca existiu.

O lagarto
poderia
ser cântico
mas é grito
tão estridente
que não se ouve.

Quem olhar o lagarto
nada verá.

Ele é nada.

Um quinhão
de poesia
tão repleto
de poesiaque se fez
silêncio.

Coisa que ninguém sente
ninguém pega.

O lagarto
é um pranto
seco
tão seco
que poderia
ser lágrima.

Festa


Nesse fim de tarde
os mortos recém-sepultados
enterrados pelo esquecimento
afogados pela terra
subitamente
sorriram.

No cemitério
também o silêncio
num lampejo
despertou sua alegria.

Ninguém ouviu os risos
dessa insólita festa:
os mortos
nesse fim de tarde
recém-nascidos
subitamente
regressaram à infância:
jazigos empoeirados
sementes a germinarem
o além de todo o tempo.

Infância



Cadmus


Hoje
na memória do dia
o verde germina
as raízes do nada
os frutos tombados
no chão do exílio.

Hoje
na lembrança da tarde
as folhas afloram
os ventos do nunca
os segundos caídos
na terra da ausência.

Uma infância
de aroeiras e flamboaiãs
cheiro de alecrim
gosto de hortelã
despontou sua melancolia
nos galhos verdes da tarde.

Ladrão de inutilidades


Joaquin Sorolla
em meu peito
um forasteiro
vindo do último
vento do oriente
estrangeiro sem face
sem pés e pernas
a percorrer a pátria
da inexistência.

em minhas veias
um ladrão de inutilidades
ancião de areia
a roubar do vento
sorrisos de chuva
alegrias de nuvem
lágrimas de estrela.


em minhas palavras
um menino triste
tão triste quanto a esperança
tão velho quanto a alegria
um menino invisível
feito de poeiras e folhas
morte de todos os instantes.

Carniça

Franz Marc


À beira da estrada
na soleira do mundo
o cão morto
era um grito
um gemido
asfalto crucificado
pelo silêncio do céu.
A dor que lhe quebrara
a espinha
a tristeza que lhe pungira
a carne
a agonia que lhe macerara
os olhos
ninguém viu
ninguém sentiu.
Nem mesmo as pedras
os ventos
muito menos Deus
compadeceram-se
daquele urro morto.
Somente um urubu
era-lhe inteiro vida
plumagem de luto
a saciar a fome
com o pão da morte.

Susto

Um susto cortou os ares.
Um alumbramento feriu as nuvens
latejou a vida:
um tucano a espargir a solidão
por todos os caminhos.

O cavalo amarelo

Franz Marc

(um dos cavalos amarelos de Franz Marc)


a António Ramos Rosa


Por entre carros
e buzinas
cortando a fumaça
das fábricas
cavalgando
sobre o lixo
do asfalto
súbita magia
desatou suas crinas:
um cavalo a correr
um cavalo amarelo
desenhado pelas mãos
de um menino
esculpido pelo cinzel
dos ventos
um cavalo livre
desatado de celas
e esporas
envolvido por nuvens
e brisas
súbito
explodiu a vida
arrebentou o coração
da cidadena plena agitação
do trânsito.
As crianças que dormiam
as viúvas que choravam
as andorinhas que voavam
repentinamente
foram tomadas pela alegria:
um cavalo amarelo
um cavalo a correr
desatou súbita magia
nas crinas do vento
nas pedras do mundo.

O anjo


Sobre o jazigo
o anjo assiste
ao lento fluir
da eternidade.
De tanto se ferir
na noite
na chuva
no instante
de tanto se rasgar
no sol
no vento
no nada
o anjo teve a face
cinzelada pela cicatriz
do espanto.
Dói-lhe na entranha
nos ossos de pedra
o grito das cinzas
por ele veladas.
Lateja-lhe na carne
no ventre de argila
o silêncio do homem
(areia sob os seus pés)
por ele emudecido.
Impassível
acorrentado em sua mudez
ancorado em sua prisão
o anjo chora por dentro
no íntimo do mármore
a dor das veias
a pulsar na terra.
Sobre o túmulo
o anjo respira
a lenta agonia
de todas as ausências.

Outono

Attila Richard Lukacs
Nas antecâmaras do silêncio
o amor estende os lençóis de luto
o linho suave do lamento
esculpindo nas sombras da ausência
um pergaminho de lágrimase tormentos.
O que fazer dos braços
do peito
o que fazer da carne
quando a dor torna excesso
o tudo mais além do eu?
O que fazer das chuvas
das horas mais tristes da infância
o que fazer dos gestos
quando a hora torna cicatriz
o todo infinito aquém do eu?
Em pequenos barcos de papel
escoam-se os risos do menino de outrora,
as cirandas de cinzas
e aurorasdo Nada.
E em tudo nasce a névoa,
o sortilégio do vazio
o pó da memória.
Ante os escombros do invisível
nasce apenas o desejo do movimento urgente,
a vontade de andar contra os acasos e acidentes.
Entretanto,
apesar do silêncio
a vida estoura
rápida,
precisa
conclamando à luta
as mãos e o poema.

Mesmo sem itinerários
a vida ergue seu cântico
para além de todas as noites
para além de todas as ausências.

Na intimidade da noite


Nelly

Na intimidade da noite
teu corpo estertora
pleno de energia.
A vida
singelo milagre
correnteza de assombros
moinho de espantos
espoca em tuas veias
em tuas pupilas
nos teus músculos em alerta.
Um imenso rio de vertigens
navega nos teus pulsos
te incendeia
te impele aos ventos
e desatinos.
Só a loucura acompanha
o fluxo dos teus pensamentos.
Só a insensatez mede
teus passos
costura tuas palavras
e olhares.
Súbito podes estourar
de tanta vida
podes ter uma overdose
desse vício que te alimenta
e mata.
E nessa queda sonâmbula
vôo de asas e estrelas partidas
só a poesia te acompanha
roteiro de solidão e amargura.

Luis Miguel Nava


a Rodrigo Petronio
Tua lucidez
revelava aos ventos
as entranhas da poesia
o âmago de toda palavra.
Jamais soubeste
mas tua sina
sempre fora os oceanos:c
haga de sal em teus ombros.
Agora que tua presença se desvaneceu
o sorriso de toda criança é tua presença:
vôos e milagres a perpetuarem
teus olhos pelos espaços.
Também ninguém jamais soube
mas no dia de tua morte
tua poesia
perdoou a todos aqueles
que se ausentaram da compaixão.

A liberdade é azul


A morte trincou as janelas, as portas da casa onde as mãos da menina já não mais tecem sementes e arco-íris. A morte rasgou os punhos em paredes de silêncio, em sinfonias de infinita pulsação. Entretanto, apesar da lágrima, do peito oco contra as tardes, apesar dos dentes a trincar o sal e o grito, a vida esplendia, intacta, sua partitura de azuis. O corpo, em sua quase nudez, mergulhou na piscina, nas águas de toda origem, e, tal como um feto, abrigou no umbigo a infância dos nascimentos. Nas águas, os braços desmancharam-se na ternura: amor feito de pequenos resíduos, milagres súbitos a ordenar o caos da dor.

Felizes juntos



O quarto comprime as feridas do amor em agonia. O desvelo, repentinamente, afagou o grito, a carne macerada, compondo um tecido de gestos e ternuras. O rosto de um era o eco do rosto do outro: duas almas amando o corte das lâminas cegas, a poeira do que perece antes do nascer. Todo o segredo deles, sussurrado nas entranhas de uma árvore, germinou raízes que se fincaram na solidão. Como a foz a dispersar as águas e as ausências, um vento disseminou os amantes em campos de lágrima e silêncio. Em moradas opostas no mundo, duas faces fitaram os seus avessos, os estilhaços do mais perfeito dos amores.

Através das oliveiras


Abbas Kiarostami
Através das Oliveiras, caminho como se fosse o meu íntimo o vento a desatar o alarido das folhas, os verdes gestos do tempo. Através das Oliveiras, perco meu rosto entre o movimento dos ramos, entre o movimento de crianças invisíveis e, desatado de mim, meu rosto caminha além dos meus passos, perdendo-se no infinito do teu próprio rosto. Através das Oliveiras, busco o início do teu corpo, o limite do teu nome, o pensamento impossível: música a adejar sobre tudo o que é humano. Através das Oliveiras, esparramo pelas raízes os sentimentos: cacos de um cristal espatifado nas origens e descubro, enfim, que cada movimento do meu corpo reluz o sol do teu perpétuo nascimento.

O cheiro da papaya verde


Com o dedo, a menina afaga o âmago do fruto. Seu desejo fere a pele dos milagres. Nos acordes do seu sentir, tudo é inaugural: a textura das cores, o paladar em viva carne e sentimento, o silêncio em inesgotável manhã. Também em seu cerne, uma semente antecipa os amadurecimentos. Ela é o louvor de todas as minúcias, o pulsar de toda gota, o calor de todo grão. Nas alturas da casa, a anciã acalenta as preces e os mortos, mas só a menina conhece a linguagem do imperecível. Em sua pele, todo nascimento banha-lhe a nudez, toda inocência acalanta-lhe o tato. A menina acaricia o âmago do fruto, enquanto um cheiro de festa mergulha o existir no verde mistério da vida.

Filhos do paraíso


A terra sofre ao leve toque de seus pés. Nos caminhos da indiferença, cada pegada torna-se uma cicatriz de inocência. Os irmãos de tal maneira tiveram as pernas trançadas, que os pés de um levam os passos do outro. A amizade queimou a vida até o seu mais agudo lume, extravasou o âmago dos meninos em todos os ventos. Liames de fraterno calor ataram-lhes a pele, tramaram em suas faces, um único sonho, sorriso de pólen e semente. E correndo, arrastaram consigo as constelações, as galáxias em desvario. Correndo, com seus pés de música, atingiram o cerne de Deus, a morada do silêncio. A terra chora ao leve toque de seus pés, mas em cada uma de suas pegadas um grão germina os pães e os milagres.

Irmã das epifanias


Dora Ferreira da Silva

a Dora Ferreira da Silva

Um sentimento de infância
inaugurava sempre
cada recanto de tua casa.
Era o teu destino
uma sede de alumbramento:
raiz vincando os amanheceres.
Irmã gêmea das epifanias
eternamente foste a menina
aturdida pelos crepúsculos
encantada pela paixão
de um Cristo que
agora
contempla toda a nudez de tua face.
Em teus lábios
Deus
tal como uma criança
adormecia sempre.
Era dos sonhos dele
que despertavas
o oráculo de tua fala.
Agora que já não mais
apascentas os milagres
uma solidão surda
fechou as portas de tua casa
empoeirou os móveis de tua sala.
Em todas as pedras
em todas as perdas
uma orfandade clamarásempre pelo teu nome.

Orelhas do livro por Donizete Galvão


Donizete Galvão
(Poeta e jornalista)

O leitor que procurar apenas traços autobiográficos explícitos em Biografia do deserto vai mergulhar em mundo bem mais obscuro, formado por várias personas a quem o autor dá voz. Ele se distancia da auto-referência para tratar da dor, solidão e orfandade daqueles que enxerga como irmãos. Podem ser pessoas fictícias, dos filmes, ou pessoas reais que passam pelo seu olhar atento.

Seres sempre à margem, como mendigos, deformados, a avó prestes a morrer, o João que vai ao banco, os desafortunados. É com intensa emotividade que ele traça esses retratos. Há um sentimento de solicitude, de compaixão para com essas pessoas. Como se a dor delas precisasse de algum jeito ser recuperada e ganhar o consolo sob a forma de poesia. Contraditoriamente, ao falar dos outros, de maneira enviesada, acaba compondo também um auto-retrato, em que se percebe um grande sentimento de perda.

A poesia de Alexandre Bonafim revela, assim, uma sensibilidade dolorida, uma melancolia que se estende sobre os homens desde o princípio. Tem fortes traços expressionistas e passionais. Há também uma ligação com a lírica contemporânea portuguesa, de quem é grande leitor.

Partindo da experiência com o real, Alexandre Bonafim, na figura do centauro bate “... a terra/ do mistério/o solo/ do invisível.” "O centauro/ cavalga/ no limiar/ entre o verbo/ e o silêncio.” O real, entretanto, é sempre mais denso. “O poema é resquício/ deserto de vida”. Do deserto do poeta surgem poemas com a emoção profunda de um réquiem.

Iminência de presença

Josias Padilha
(Escritor, estudantes de Letras na Usp)

“Tudo é tão vago como se fosse nada.”
Caio Fernando Abreu

Enfim, ganha substância tátil a mais que burilada palavra em que Alexandre Bonafim vem forjando há tempos em sua virtual oficina pública, o Blog “Arqueologia dos Acasos”. Quem tem o prazeroso hábito de visitar este sítio, pode perceber de perto o esmerado processo de lapidação do que se tropeça nas escavações do oco do mundo. São poemas inteiros que somem, versos que mudam, palavras pinchadas fora, na busca da expressão precisa, da forma exata que já se precipita em conteúdo ressonando no coração do leitor. É como coleta de fruto no ponto que vários poemas irromperam do “Arqueologia dos Acasos” para este Biografia do deserto, cuidadosamente ordenado e fixado neste insubstituível objeto transcendente que é o livro.
Denunciando, já na capa, a riqueza plástica que poderá ser observada pelo leitor ávido de atravessar esse deserto, está a gravura do grande expressionista alemão Franz Marc. A transdisciplinaridade artística de Bonafim produz grandes achados. O diálogo de sua poesia com a pintura, a escultura, o cinema – vide as cinco projeções nas telas de poemas em prosa exibidos no livro – e, mesmo com a grande prosa, gera um lirismo extremamente imagético. Manancial de inusitadas metáforas, das quais arroiam versos como “A vida/ singelo milagre/ correnteza de assombros/ moinho de espantos” rumo a um frenesi que explode em “Gotas de/ grito” orvalhando “a terra da ausência”, o poeta pesa cada palavra, cada adjetivo, explorando suas potencialidades, suas forças expressivas. É como parte desses grandes achados que temos os “Cavalos amarelos” de Franz Marc a postos nos umbrais dos possíveis mundos suscitados pelo título Biografia do deserto, título esse aparentemente estranho àquela vivacidade latejante da gravura. Como não estamos diante da junção de realidades díspares como praticado pelo surrealismo, essa estranheza é facilmente dissolvida na imensa riqueza semântica dessa associação. O amarelo está entre as mais quentes das cores, a mais ardente coloração vestindo o cavalo, carro do sol escaldando o biografado "ancião de areia" do deserto de Bonafim. Para Kandinsky, o amarelo é a mais divina das cores e, ao mesmo tempo, a mais terrestre. É essa mesma ambigüidade que veste o cavalo, ser ctônico que alcança a função de corcel dos deuses. É nessa condição que ele pode passar a totem do eu lírico sem face da lírica moderna. Um processo de iniciação para a vestimenta das mais diversas máscaras, pois o cavalo, embora sendo da terra, se funde a todos os outros elementos. Em suas metamorfoses, aparece galopando nas ondas das águas, alado, rasgando os ventos e, bola de fogo, atravessando as estrelas. E alcança no dragão, um híbrido hipoofídico, um cavalo-serpente que também é pássaro, a sua mais fantástica metamorfose. Sobrevoando esse deserto biografado, ele pousa no poema “Os dragões” para nos lembrar do paraíso no tabuleiro complexo das contradições que é esse próprio livro.
Toda essa riqueza de imagens vem a serviço do oco, do vazio, do nada, da ausência, da orfandade de um mundo que perdeu o sentido. Logo no primeiro poema do livro, em uma homenagem a grande poeta Dora Ferreira da Silva, encontramos, em tom elegíaco, os seguintes versos: “[...]/ Em todas as pedras/ em todas as perdas/ uma orfandade clamará/ sempre pelo teu nome.” É por meio do esmagador anagrama de pedras como perdas que o nosso poeta chega ao pó arenoso das ausências do mundo. Criando um deserto onde se lança, a poesia cavalga em dunas de silêncio. Entranha-se no nada e o povoa com imagens em constante metamorfose, exibindo o poder transfigurador de todo o grande poeta. Com esse poema, Bonafim revela a sua própria poética transpassada pelos elementos simbólicos do feminino e do desarmado olhar da infância. Embora falando de Dora, é também como um menino aturdido “pelos crepúsculos” que o poeta nos convida para as suas “cirandas de cinzas”, “cirandas de ausências” brincadas por “crianças envelhecidas”. Essas cirandas ecoam por todos os poemas, acompanhando a queda do eu lírico que lamenta a totalidade estilhaçada. É na infância, quando “tudo é inaugural”, que o poeta procura envergar o mundo numa curva urobórica na qual os tempos se fundem e morte e vida se encontram – “Nas alturas da casa, a anciã acalenta as preces e os mortos, mas só a menina conhece a linguagem do imperecível.” Mas essa criança não existe, é miragem, caco de memória da “avó (que) já se sabe/ quase morta...”
“Giramos em torno de uma ausência e todos os nossos significados se anulam ante essa ausência”, já nos advertiu Octavio Paz. A imagem evaporada do mundo, cede lugar a hegemonia da técnica, com sua paisagem hiper-real, onde não cabe a poesia. Nesse mundo onde o homem não consegue mais chegar a si mesmo, porque não consegue mais alcançar o outro, há uma multiplicação cancerosa do eu fechado e obstinado em si mesmo, temos uma dispersão em repetição, propagação do idêntico. O tu desaparece da consciência e com ele o próprio mundo. E “a poesia:”, acrescenta Paz, torna-se “procura dos outros, descoberta da outridade.” Mas se não há nem mesmo a possibilidade de monólogo, porque é o outro quem escuta o que digo a mim mesmo, a poesia torna-se apenas iminência de presença tecida com os fios da ausência, uma tessitura da incomunicabilidade. Eis o que o leitor observará na poesia de Bonafim, poeta imerso nas grandes questões de seu tempo, de olhar agudo, treinado também pelo exercício constante de suas “crônicas de crítica literária”, publicadas em seu Blog. Com essas crônicas, o nosso poeta, fazendo poesia de poesia, lê os grandes poetas ignorados pelo pequeno circuito da crítica consagrada.
Biografia do deserto nos lança à consciência do nosso abandono por nós mesmos, ao desamparo que nós nos legamos, a poeira de existência que nós nos tornamos. Caminhando por esse terreno arenoso, o leitor encontrará células de ausências figuradas no que ninguém vê, como a flor drummondiana plantada no asfalto, aqui, metamorfoseada em palhaço. A própria alegria vira “avesso do nada/ espelho da ausência” refletindo os bastardos do mundo como o próprio poeta e toda a sua legião de pedintes, lázaros, joãos, anciãs, bêbados, cegos, estátuas, anjos mortos, cães amputados e cães apodrecendo na “soleira do mundo”, virando ceia para um urubu, “plumagem de luto”, única testemunha para o que “ninguém viu/ ninguém ouviu.” Essa ausência, essa incomunicabilidade, transforma os arroubos de alegria, de plenitude dos poemas “O unicórnio”, “Os amantes”, “Esquina”, “Liberdade livre”, em efêmeras miragens no meio do deserto. Talvez, ecos da “insólita festa” d“os mortos recém-sepultados/ enterrados pelo esquecimento”, da qual “ninguém ouviu os risos”.
Já tropeçando no encalço das últimas palavras, o leitor convém ficar alerta: assim como um monumento não captura os olhares de um transeunte pela sua inscrição, a poesia também escapa às suas apresentações, meras legendas diante da grandeza do verso no qual cada linha descortina um mundo. Prenhe do tudo a poesia cria a ausência com o mesmo material da presença, faz a tristeza e a melancolia com os arroubos da alegria e da plenitude. Esse caráter totalizador da poesia foi explorado por Bonafim como um mestre em seu ofício. Biografia do deserto é o trabalho de um eremita cego que “veste/ o âmago/ da palavra/ o sêmem/ do verbo” e com sua vidência “desvenda/ as metáforas do impossível” e nos conta o árido ermo no qual nos lançamos. Diante dessa grandeza e já com o leitor alerta, eu só posso terminar esse pre(nada)fácil parafraseando um monolito do mais emblemático poema dessa obra, “O lagarto”: ao me deparar com a poesia tão repleta de poesia me fiz silêncio.
Josias Padilha